A Arte da Desmistura | 12 de agosto de 2015 - 18:37

O homem e a sua natureza

     Desde que surgiu na face da terra, o homem teve que aprender a dominar o que o envolvia, para sobreviver. Primeiro, teve que enfrentar a natureza, para se ajustar a ela. Depois, conhecer a si mesmo, para criar condições de satisfazer seus desejos e necessidades. Num segundo momento, para conviver adequadamente com o seu semelhante. Finalmente, passou a buscar uma forma de alcançar seu objetivo maior, a perfeição. O problema, com raiz no equilíbrio, passou a serem os excessos.


     O homem tem em si alguma coisa que o impele a se superar. Algo além da preservação das espécies. Algo que vai além do racional. Mas, para se falar sobre o conhecimento do homem pelo próprio homem, temos que passar, invariavelmente, pelo terreno da filosofia, que dá os seus primeiros passos, na Grécia.


     A princípio, os gregos agrupavam todas as informações que tinham, exceto os conhecimentos mitológicos, no seio da filosofia. Só a teologia era tratada fora dessa grande massa cultural. Todas as demais ciências se desenvolviam interligadas a essa base aglutinadora até definirem suas especificidades e se desligarem da grande mãe das ciências.


     Desde o primeiro momento que o homem pensa o homem de forma estruturada, surgem sábios que se destacam por seus conhecimentos e habilidades. Na Matemática, vamos encontrar Pitágoras. Na Medicina, Hipócrates. Mas foi Anaxágoras (500-428 aC) que fundou a primeira escola filosófica de Atenas.


     Com Leucipo, temos a primeira tentativa de explicar a criação do mundo, fora do universo mitológico. Ele seria formado por átomos, pequenas partículas que reunidas dariam origem a tudo o que nele existe. Foram seus contemporâneos, Empédocles (490 aC - 435 aC), autor da teoria dos quatro elementos e Sócrates (469 aC - 399 aC), um marco referencial da filosofia.


    Seu discípulo Demócrito de Abdera, hoje, Trácia, era conhecido como o filósofo que ri e dizia que o mundo era formado por dois elementos: o vácuo (não ser) e átomos (arke), partículas indivisíveis.


     São os primeiros materialistas conhecidos, entre os homens da ciência.


     Distinguido por sua sabedoria, são frases de Demócrito:


     "Sábio é quem não se aflige com o que lhe falta e se alegra com o que possui" e “toda belicosidade é insensata, pois, enquanto se busca prejudicar o inimigo, esquecemos o nosso próprio interesse". Considera ainda que, para alcançar a perfeição, que ele trata por virtude, a melhor forma é o incentivo à descoberta, mas sempre através do uso de persuasão. Declara-se contra a punição, até porque quem evita o erro por temer a lei, provavelmente, agirá de maneira errada, em segredo. Torna-se fundamental o alinhamento com as Leis da Natureza e a sua utilização adequada, para que se reduza as possibilidades de erro.


     Epicuro afirma que o propósito da filosofia é atingir a felicidade, cuja característica principal é a ausência de dor (aponia) e a imperturbabilidade da alma (ataraxia). Sabendo que o homem, como os animais, foge da dor e busca o prazer, assegura que não há como evitar as dores físicas, que podem ser suportadas e não costumam ser duradouras. Mas as dores que perturbam a alma são as mais difíceis de serem enfrentadas e podem permanecer conosco, por muito tempo, depois de nos atingirem. Constata que elas costumam estar associadas a frustrações e geralmente tem origem em algum desejo não realizado. Um precursor de Freud.  Percebeu ainda que as pessoas eram supersticiosas e, na sua ilusão, acabavam se afastando do verdadeiro sentido religioso e dos próprios deuses que, para ele, viviam em perfeita harmonia, em sua bem-aventurança divina. O conteúdo de sua mensagem é, evidentemente, oposto à proposta platônica, de fundo teológico.


     O prazer para Epicuro está na capacidade humana de dominar as emoções e alcançar a quietude da mente; mas se dá fundamentalmente pela satisfação de uma necessidade ou quando se aquieta uma dor; portanto, no controle sobre si mesmo. Para ele, o prazer devia ser contínuo. Esse tipo de prazer é próprio dos sábios e só é alcançado pelo equilíbrio e precisão das atitudes, nunca pelos excessos. A alimentação exagerada, por exemplo, traz mal estar ao corpo e deve ser descartada; reiterando que todo exagero é nefasto.


     Epicuro lembra a figura de um profeta, mas um profeta do mundo. Ele procurou um lugar especial para estabelecer a sua escola, onde passou a trocar ideias com seus discípulos. Era um terreno arborizado, nos subúrbios de Atenas, revolucionando, desta forma, a maneira de passar seus ensinamentos. O jardim ficava próximo do silêncio do campo e os seguidores de  Epicuro, por esta razão, passaram a ser conhecidos como os “filósofos do jardim”.


    A essência dessa mensagem é que a inteligência humana é capaz de conceber  e abarcar  a realidade e que a felicidade é algo possível, principalmente, na ausência de dor e das perturbações. E que, para alcançar a paz, o homem só depende de si mesmo. Não depende nem dos próprios deuses. Tudo isso apontando para uma vida simples e regrada.


     Já num outro estágio de evolução e numa atitude missionária transcendente, que, muitas vezes, se transforma numa proposta religiosa, surgem homens que procuram encontrar condições para o outro alcançar a felicidade. Homens de fé, voltados para a sua mensagem.


     Neste padrão encontramos São Francisco de Assis.


    Francisco nasceu em Assis, na Úmbria, que fica na Itália, em 1182. Filho de um nobre, cresceu cercado de riquezas, mas abdicou de todos os seus bens, aos 24 anos.


     Seu caminho de provação e dor se iniciou com uma peregrinação por Roma, vivendo, a partir daí, na mais absoluta solidão e pobreza, quando recebeu a ordem divina para restaurar sua Igreja, que estava em ruínas.


     São Francisco viveu da maneira mais simples possível, louvando a Deus e pregando o amor incondicional. Foi o santo da paz, amigo dos animais e da natureza.


     No fim da vida, cego e alquebrado por uma vida de penitências, volta a Assis, para morrer, humildemente, em 1226.


     São frases de São Francisco de Assis:


      “Para pregar a paz, primeiro você deve ter a paz dentro de você” e “comece fazendo o que é necessário, depois o que é possível, e de repente você estará fazendo o impossível”.


     É conhecida mundialmente a sua Oração pela Paz.


     Ele também nos legou este primor de assertividade:                                                                   

     -    “Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado...                                                   

 

    Resignação para aceitar o que não pode ser mudado...                                                        

 

    E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”


     Foi canonizado, em 1228, por Gregório IX.


 


     Finalmente, numa forma mais abrangente de evolução, encontramos teorias que fundamentam no prazer pela utilidade. Nelas, o foco é a construção do bem comum e do ambiente propício para a evolução do homem, entre os homens; a Natureza como provedora natural da evolução humana. O homem à serviço do homem, sem ser seu escravo.


     Aí encontramos Spinoza.


     Quando trata “Da Servidão ou da Força das Paixões”, na sua Ética, Spinoza considera que as paixões humanas são naturais; não sendo boas nem más. E assevera que, quando deixamos que as paixões nos dominem, sob causas exteriores às nossas, somos invadidos por forças impulsivas, vindas de fora. Acontece o contrário, quando o homem deixa que sua natureza fale por si mesma e o guie: neste caso, é Deus agindo nele (homem), por ele e para ele. Esta, para ele, é a verdadeira expressão da liberdade.


     (...) “este Ser eterno e infinito que chamamos Deus ou Natureza, age com a mesma necessidade com que existe.”


     Para Spinoza, o homem só é livre quando conduzido pela razão. Concepções como bem e mal e perfeição e imperfeição são relativas, pois ele associa o bem à utilidade e o que é útil para um pode não o ser para outro. Em essência, mau é o que vai contra a Natureza, o que traz prejuízo ao homem e não é útil à sua conservação. Perfeição e imperfeição, ou bem e mal são apenas formas de pensar, maneiras que adotamos para comparar as coisas. Somos nós que lhe agregamos valores de positividade e negatividade, de acordo com a nossa ótica e interesse. Para ele as paixões humanas podem até impedir que se alcance a felicidade, porque é justamente na sua presença que o homem se opõe àquilo que lhe é natural. O fato da aceitação incondicional das Leis da Natureza (Deus), o encaminhará a amar a si mesmo, dando à vida o seu devido valor.


     Ou seja, a nossa razão se baseia naquilo que nos é útil e deve manter sempre presente esse princípio de utilidade até que se alcance a perfeição. No sentido oposto, a imperfeição é o que nos afasta desse vínculo utilitário, fazendo da razão escrava das paixões, impedindo a sua livre atuação e escolha.


      Nietzche se aproxima de Spinoza, quando ressalta a importância de que se evite indicar, ao indivíduo, o caminho a ser seguido, na sua busca pela felicidade, e se insista na utilização das leis naturais, que podem levar a ela, porque a felicidade individual obedece a leis próprias, quase sempre desconhecidas de quem está envolvido e dos demais.


    Do que segue, podemos considerar que a virtude, antes de ser um bem, é uma força potente, como diria Nietzsche, que dá autonomia à nossa existência. E é na potência e atividade dessa força que se encontra a liberdade individual. Coincidentemente, na Ética de Spinoza, vemos que, quanto mais nos esforçamos na busca do que nos é útil, preservando a essência do nosso ser, mais seremos virtuosos. Ao contrário, à medida que ignoremos esta procura, aumenta o risco de nos perdermos de nós mesmos e da nossa integração à natureza.


     Outro ponto de concordância entre eles diz respeito à sua visão sobre piedade ou compaixão. Spinoza nos deixa claro que vê a piedade como nefasta, inútil para o homem racional. Considera que ela traz em si um sentimento de tristeza, que se manifesta quando somos tocados pela miséria alheia. E a tristeza é um mal que não traz nenhuma utilidade ou benefício ao homem. A compaixão, para Nietzsche, não passa de um engano. Seria como uma vingança ou legítima defesa diante do que nos provoca horror ou sentimentos tortos como a covardia. Desta forma, seria também uma fraqueza, com todo o abandono afetivo a que nos submete. Na visão nietzschiana, a compaixão seria uma duplicação do nosso eu, numa espécie de alter ego, onde sofremos pelo outro e, ao mesmo tempo, por nós mesmos.


     Spinoza ainda discorre sobre outros afetos que, segundo ele, causam danos ao homem, como a humildade, o arrependimento, a esperança e o temor. Nietzsche, neste sentido nos aconselha a fecharmos os ouvidos aos lamentadores. Considera que se nos deixarmos levar pelo lamaçal de lamentos, nós, pobres mortais, não suportaremos o peso de tamanha tristeza.         


     Mas todos estes afetos, a meu ver, nos são importantes, num primeiro momento. Uma postura de humildade evidencia como estamos distantes da perfeição, evitando confrontações desnecessárias. O arrependimento nos proporciona a capacidade de perceber uma escolha mal formulada. A nova escolha, no entanto, não deve ficar presa ao estigma do erro detectado. O medo é um excelente indicador da proximidade de algo perigoso. O erro maior está em nos deixarmos dominar por ele. Quem percebe um perigo, deve, imediatamente, se preparar para enfrenta-lo. A esperança, por sua vez, é um mal necessário. Quem não tem expectativa, não realiza. Só não podemos ficar cegos, diante dela. Tenho inclusive uma poesia que diz: - Sai da frente, esperança! Você não me deixa enxergar direito. Portanto, são sentimentos que servem de alerta, mas que, mantidos, tornam-se estorvos. 


     Para Nietzsche, o homem se supera quando atinge um estágio superior, que ele intitula de super-homem, e que pode ser traduzido como o lado humano, além do homem, onde ele realiza por si mesmo e, neste sentido, se afirma. Pois só quando investimos na nossa capacidade de realização, podemos alcançar nossos desejos e objetivos.


     Neste sentido, fica evidente que o que realizarmos debaixo de um sentimento de temor não é saudável, pois está mais próximo de uma simulação do que de um desejo real ou escolha pessoal espontânea. Não praticar o mal, por temor a qualquer coisa, é fruto de um desvio, é uma fraqueza e as leis a que estamos submetidos deixam de fluir, na sua mais pura naturalidade.


     Para Spinoza, há uma tendência para o bem, mas ela deve se desenvolver de forma natural. A alegria, sem excessos; a forma, adequada. Fugir do mal não passa de uma impostura intelectual que faz com que os sentimentos e emoções sejam tratados de forma tutelada, para se ajustarem à realização de nossos desejos, sob risco de nos afastarmos dos desígnios da natureza. E esse alinhamento corresponde ao conhecimento de Deus, porque Deus, para ele, é a própria Natureza, causa de si mesmo. E o mundo é Deus enquanto causa e efeito de si mesmo, e até como modificação própria. A essência do ser deve ser a meta de nossa procura.


     Nesse patamar, lembro meu avô, Joaquim Rodriguez, que, já nos seus noventa e seis anos não admitia não ser mais útil para nada e, principalmente ficar na dependência de alguém, na sua mais simples relação de família. Quando se viu sem forças para evitar isso, abriu mão da vida para voar como um pássaro, para o seu lado divino, como uma vela que vai abrindo mão da sua luz.


     Portanto, poderíamos alinhar Demócrito ou Epicuro a Francisco de Assis e a Spinoza, como pilares da busca do homem em direção à sua perfeição, no seu mais alto nível de investimento. Jesus, Buda, assim como Lao Tze e Gandhi, alinham-se na grandeza transcendental que os faz próximos da divindade ou da sua essência e possível mensagem.


     Muitos nomes poderiam ser aqui citados, mas trago apenas mais um: John Lennon, que de forma antagônica a todos os que buscavam a aproximação com a perfeição e ao divino, lutava como um cavaleiro (talvez medieval) contemporâneo, para que o amor fosse abraçado pela humanidade, na sua mais livre manifestação. É nesta trilha que nascem os heróis e profetas que morrem pela sua causa.


     Temos a eternidade para alcançarmos a perfeição. Só espero que não demore tanto, porque o tempo, o nosso tempo, não é infinito.



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Sobre o autor

Ivan Wrigg Moraes é poeta, psicólogo, compositor, analista de sistemas, professor e articulista. Publicou cinco livros de poesia e uma antologia poética, dois de literatura infantil, uma prosa filosófica e quatro livros sobre história do teatro, além de ter gravado dois CDs solo (Lenha na Fogueira e Se Rolar, Rolou). Recebeu prêmio da UBE para o livro 3 x 4, de poesias.

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