Maminha de ouro
O relógio despertou ao meio-dia e ele assustado arregalou os olhos, "mas já?", pensou. Não estava muito cansado, mas ainda na cama, pegou o celular e tuitou "acho que estou com síndrome de burnout". Havia trabalhado por toda a madrugada anterior no seu estúdio de co-working no Humaitá, onde terminou o project que já estava atingindo o seu deadline, um co-living em Santa Teresa com winter-garden e yoga-space.
Enzo Casagrande Dudenhoffen de Albuquerque, era um arquiteto em ascensão na zona sul carioca. Aos 36 anos já no primeiro emprego gabava-se em seu portfólio de ter realizado o projeto de reforma do loft de David Zylbersztajn. A vida era doce e animada para um Dudenhoffen, porém hoje o ânimo era por um outro motivo. Pela primeira vez na vida conheceria a zona norte de sua cidade, sim ele conheceria o Rio de Janeiro profundo. E não seria de qualquer forma, ele iria tomar o Trem do Samba rumo à Oswaldo Cruz.
Correu para o banheiro, lavou o rosto, borrifou um desodorante neutro nas axilas, ajeitou o coque, a barba e correu para a sala. Pegou sua camiseta de botões inspirada em conceitos étnicos da FARM, vestiu sua calça cáqui-caganeira da Cantão, calçou suas alpargatas da Elle Et Lui, desceu as escadas do seu prédio correndo feito uma criança, num misto de medo, ansiedade e excitação. Era um cara bastante simpático, deu um abraço no seu porteiro Severino e lhe comunicou:
- Estou indo lá conhecer a sua terra, Sevê, vou pra Oswaldo Cruz! - disse Enzo, eufórico.
Severino riu sem graça e respondeu:
- Ah, que legal, mas na verdade eu moro em Paracambi.
- E não é perto? - questionou Enzo.
- Não muito, uns 75 km de distância, rs.
- Ah, mas de UBER ou Cabify é pertinho, Sevê, e dá baratinho também, uns 130 reais só.
- É sim, hehe. Vai com Deus e toma cuidado com essa pochete de couro de guaximim do Sri Lanka aí, rapaz.
- Pode deixar...
Enzo, que tinha 36 anos mas aparentava 24 e porte de jogador de rugby, gostava de verdade de Severino, que tinha 40 anos mas aparentava 58 e o corpo do Zeca Pagodinho. Em épocas de Natal, ele sempre lhe dava os panetones que ganhava dos clientes, algumas roupas velhas, e até fazia uma quentinha pra ele com as sobras da ceia no dia 25.
"Estou com muita fome, só comi uns snacks ontem", pensou Enzo caminhando pelas ruas do Jardim Botânico se dirigindo para o Food Truck da Roberta Sudbrack, para ter uma experiência gastronômica conceitual antes de embarcar para Oswaldo Cruz rumo ao desconhecido. Gastou mixaria no local, sua conta deu apenas 219 reais por um sanduíche de moela de galinha do brejo, um suco de pupunha e um brulè com figo selvagem do deserto e tâmaras da Catalunha Livre.
Apanhou um Uber black e foi até a Central do Brasil. Ao botar o primeiro pé fora do carro, ficou momentaneamente surdo do ouvido esquerdo ao receber um berro de "CHIP TIM, CHIP CLARO, VEM QUE TEM". Meio tonto com o cheiro de urina e daquela água preta que fica pelos cantos das calçadas do Centro da cidade, andou mais cinco passos e agora ficou com o ouvindo direito dando linha, piiiiiiiiiiiiiiiiiiii, com outro berro, "CD DVD CD DVD, ALÔ FREGUESA, SE QUISER BOTAR AS CRIANÇA PRA DORMI E NAMORAR ATÉ ASSAR ESSA NOITE, O PRETINHO DA PROVIDÊNCIA TEM TUDO, XUXA SÓ PARA BAIXINHOS, PATATI PATATÁ, BRASILEIRINHAS, FROZEN E FACES DA MORTE".
Estava enjoado com tudo aquilo mas ficou hipnotizado vendo como o pastel do Reizinho da Central era feito, até que uma voz rouca irrompe o seu ouvido: "ô barbudinho, paga um joelho e um suco pra mim", pediu um cracudo fedendo à sujeira de unha acompanhado de um gordinho sem braço, "ahhhhhhhhhh", se assustou Enzo e prosseguiu "toma aqui, compra o que quiser", deu 10 reais para ambos, meio que para se livrar daquela presença inóspita. Ficou com o estômago embrulhado ao ver que o cheiro de sujeira de unha que emanava do cracudo, era na verdade uma mancha amarronzada nos fundilhos da bermuda do gordinho cotó. Um segurança que via a cena, percebendo que o nosso protagonista estava assustado, chegou aos risos, deu dois tapinhas no seu ombro e falou, "isso é a Central cara, não se assusta não, apesar do choque visual o lugar aqui é tranquilo, ninguém vai mexer com você". Já estava pensando em desistir, até que ouvindo uma batucada de uma das plataformas de trem resolveu prosseguir com a empreitada.
Nas primeiras chacoalhadas do vagão, tentou puxar um "FORA TEMER" mas sem nenhum sucesso. Um ambulante tentava vender aos berros suas barras de chocolate Sufflair enquanto os ritmistas da Portela e do Império Serrano batucavam "Coração em desalinho" do Monarco, para logo emendarem com "Malandros maneiros" de Zé Luiz do Império, "a verdadeira cultura popular" se emocionava Enzo. Duas estações depois, o calor e a lotação começavam a incomodar nosso nobre carioca.
A vontade de fazer stories para o Insta se aproximava de zero.
O enjoo começava a bater mais uma vez, dessa vez ao perceber a visceralidade no contraste de seu desodorante importado sem odor, enquanto um senhor com polvilho no sovaco segurando uma barra de ferro reclamava para a esposa, "por isso que eu prefiro leite de rosas".
Enzo, que estava com os braços levantados e completamente suado, não se aguentou e soltou um "que catinga horrível de cecê", para ser imediatamente repreendido por uma tia com uma toalhinha de São Jorge no ombro, "é teu mesmo branquelo, tu acha mesmo que esse desodorante sem cheiro aí aguenta esse suvaco peludo nesse verão? Se maionese no calor azeda imagina o teu suvaco, pela saco".
O primeiro barraco em transporte público (esporte oficial e mais popular do Rio de Janeiro) presenciado pelo nosso belo personagem, foi também protagonizado por ele. Que sorte!
Ao chegar em Oswaldo Cruz, ficou embasbacado com o local, "nooossa, que lugar animalll, várias barraquinhas, várias gentes exóticas e coroas com shortinho apertado". Morto de fome e sede, foi conduzido pelo estômago até o local onde subia um cheirinho de churrasco divino. Ao chegar nessa barraca, perguntou ao vendedor, "qual a procedência desse gado? Só como carne orgânica, só compro carne de gado feliz, só gado que não foi criado em confinamento". "Gado feliz? Ah tá. Pode deixar fera, esse gado aqui é isso aí mesmo que tu tá dizendo. Nossas carnes vem de um açougue lá de Costa Barros chamado Maminha de Ouro. Só carne de primeira, só gado criado no toddynho", respondeu o vendedor.
Comeu oito espetinhos de churrasco e perguntou ao vendedor, "tem Hoegaarden aí"?, "que porra é essa, maluco"?, "como assim você não conhece? é uma breja belga", "breja?", "dã, breja, cerveja", "um, tem não", "e tem alguma IPA aí?", "ihh cacete, tá querendo tirar onda com a minha cara. Que mané IPA, rapá", "ah, esquece, me dá uma Itaipava aí mesmo".
Começou a se sentir mal, dessa vez o enjoo era de verdade, o lugar que pra ele era "animal" agora aparentava ser um "inferno". Seu celular não dava sinal de jeito nenhum para pedir um Uber, nenhum taxi estava passando nas ruas pois as avenidas estavam fechadas devido ao Dia do Samba, e só lhe restou voltar ao trem para sair dali. Dentro do Trem, agora vazio, aliviado e com o ar condicionado no talo, podia até ouvir "Vai passar mal" do Pabllo Vittar na Rádio Supervia, e aquela música foi a senha. Enzo que jamais havia comido espetinhos de rua, não resistira, chamou o raul por duas vezes, e na terceira a desgraça-mor aconteceria, Enzo cagava-se nas calças na altura da Estação Piedade...um misto de choro, ódio e vergonha tomava o seu corpo, "como isso pode acontecer com um Dudenhoffen de Albuquerque?". Um grupo de amigos que se dirigia para a feira dos paraíbas, viu aquela cena e começou a cantar em coro "Vomitaram no trem, era só macarrão", do Garotos Podres. A única coisa que nosso escol carioca, dominado pela raiva conseguia pensar era: "vou me mudar para São Paulo que é muito mais organizada, não vejo miseráveis e é muito menos terceiro-mundista que o Rio. Chega de Humaitá, quero Vila Madá".
Ao descer na Central, se depararia novamente com o cracudo e com o gordinho sem braço, que o reconheceram e falaram "ô barbudinho, tá fedendo pra caralho hein?". Aos prantos e com o celular já dando sinal, ele chamara um Taxi, que forrou toalhas e jornais para ele se sentar sem sujar o estofado no carro.
Aliviado com o fim desse dia trágico, Enzo, já em estado de relaxamento começava a ler um jornal online no seu celular até que viu uma notícia urgente: "Polícia Federal fecha açougue clandestino MAMINHA DE OURO em Costa Barros, após encontrar milhares de espetinhos de churrasquinho de gato congelados prontos para consumo".
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