Colunistas | Cantinho do Chico | 12 de agosto de 2011 - 14:04

A crise da vez

Chico Alencar
Durante os últimos 20 anos, o mundo viveu sob a hegemonia do pensamento e das práticas neoliberais: mudanças tecnológicas profundas no processo produtivo de ponta, desregulamentação e precarização das relações de trabalho, preponderância do capital financeiro, alteração do papel dos Estados Nacionais e, no plano da cultura, a consolidação do individualismo e do consumismo.

A Crise Global de 2007/2008, marcada pela quebra de grandes bancos internacionais, foi falsamente resolvida por meio de trilionários aportes dos governos, que assim salvaram o setor financeiro às custas da explosão do endividamento público. Ou seja: o povo pagou a conta da crise. Agora, não por acaso, a crise do setor financeiro privado deságua em uma gigantesca crise global da dívida pública.

A crise tem mostrado que esse modelo é incompatível com a democracia real e a justiça social, levando à desagregação social, à degradação ambiental e à falência da democracia representativa. A crise que estamos vivendo, em escala global, se expressa de forma mais contundente na implosão de uma sociabilidade regulada pelo capital financeiro. Estamos em uma verdadeira encruzilhada civilizatória: crise ambiental e climática, crise alimentar, aguda e trágica, sobretudo na África, crise econômica, crise política do sistema representativo e a crise da dívida pública.

O Brasil, que vinha surfando na maré favorável da economia internacional, em 2009 apresentou queda do PIB e aumento no desemprego. Contrariamente ao que afirma o governo Dilma, o povo brasileiro tem sim pago a conta da crise global. O governo tem se endividado – com recursos públicos – aos juros mais altos do mundo para comprar centenas de bilhões de dólares das reservas internacionais e aplicá-las principalmente em títulos do Tesouro dos EUA, que não rendem quase nada e ainda financiam as políticas estadunidenses, tais como os salvamentos de bancos falidos e a manutenção de uma máquina de guerra em várias partes do planeta. O resultado é que cerca da metade do orçamento federal é destinado ao pagamento desta questionável dívida, “honrada” por meio de gigantescos cortes de gastos sociais.

Com a possibilidade de uma “agudização” da crise no curtíssimo prazo no exterior, ou uma lenta recuperação, o Brasil poderá ser sugado pela crise que paralisa a Europa e os Estados Unidos. Crise que poderá ser, segundo analistas de diversas tendências, “longa, penosa e desagregadora”. O Ministro da Fazenda, Guido Mantega, reconhece que o perigo se avizinha, que o processo vai durar pelo menos dois anos e promete a cada mês “surpresas no campo fiscal”.

Estaria a economia brasileira sólida a ponto de enfrentar uma crise de tal envergadura? O Estado Brasileiro dispõe de mecanismos para esse enfrentamento, ou ficaremos reféns de “surpresas”? Quem pagará os custos da dívida? Aqueles que lucraram com a especulação, a degradação ambiental e a exploração humana? Ou mais uma vez serão o(a)s trabalhadores e contribuintes a pagarem a conta?

Para se preparar para o futuro, que se mostra nebuloso, é fundamental refletir sobre as bases de nossa economia, como fez o economista Reinaldo Gonçalves em recente e diligente estudo, no qual caracteriza o projeto econômico implementado na Era Lula como ‘nacional desenvolvimentismo às avessas’:

1 – Debilidades na estrutura produtiva: a participação da indústria de transformação no PIB reduz-se de 18% em 2002 para 16% em 2010. A economia brasileira está se desindustrializando, e levando a uma dessubstituição de importações: o coeficiente de penetração das importações aumentou de 11,9% em 2002 para 18,2% em 2008.

2 – Insuficiências no mercado interno: o Governo Federal costuma propagandear que alçou 30 milhões de brasileiros à classe média. No entanto, o que se verificou não foi o surgimento de uma “nova classe média”, mas sim o aumento de poder de compra de parcelas mais pobres (que Jessé Souza chamou de “os batalhadores brasileiros”), sem que os mecanismos de reprodução da desigualdade social se acabem: mais da metade das casas brasileiras não tem saneamento básico, a educação pública não se universalizou, tampouco ganhou em qualidade - apenas 14% dos jovens, aproximadamente, estão na universidade (em grande parte privada e de baixa qualidade); o Brasil tem um “déficit habitacional” de 8 milhões de moradias, além de 11,2 milhões de domicílios inadequados; a tributação regressiva e a dívida pública continuam drenando recursos dos mais pobres para os mais ricos. Os 1% mais ricos brasileiros possuem uma renda média 120 vezes maior que os 10% mais pobres! Uma maré recessiva reverterá, rapidamente, os ganhos limitados de poder de consumo, alcançados numa conjuntura internacional favorável.

Nossas terras continuam concentradas na mão de pouquíssimos e sendo utilizadas para as monoculturas de exportação. Conforme mostram as estatísticas cadastrais do INCRA, de 2003 para 2010 houve um aumento da já absurda concentração de terras no país. Em 2010, nada menos que 64% das propriedades rurais eram “minifúndios”, ou seja, propriedades com menos de um módulo fiscal, incapazes de sustentar uma família! Enquanto estes 64% de pequenos proprietários ocupam apenas 8,2% da área total, uma minoria de grandes proprietários – que representam somente 2,53% dos imóveis – detém nada menos que 56% das terras!

3 – Dependência tecnológica: segundo Reinaldo Gonçalves, ao longo do governo Lula, cresceu também um processo de maior dependência tecnológica. O indicador usado é a relação entre as despesas com importações de bens e serviços intensivos em tecnologia e os gastos de ciência e tecnologia, que aumenta de 208% em 2002 para 416% em 2010, o que representa uma duplicação do grau de dependência tecnológica.

4 – Crescimento das multinacionais: no nacional desenvolvimentismo, há preferência revelada pelo capital nacional, público ou privado, com o objetivo de reduzir a vulnerabilidade externa. Mas Reinaldo Gonçalves ressalta que houve um ligeiro aumento, e não o contrário, da participação das empresas estrangeiras no valor das 497 maiores empresas no país (excetuando-se Petrobras, BR distribuidora e Vale): 47,8% em 2002 e 48,5% em 2008.

5 – Vulnerabilidade externa: no governo Lula, há aumento significativo do passivo externo total do país, que passa de US$ 343 bilhões no final de 2002 para US$ 1,294 trilhão no final de 2010. O passivo externo aumenta de US$ 260 bilhões em 2002 para US$ 916 bilhões em 2010. O passivo externo é três vezes o valor das reservas no final de 2010.

6 – Reservas não tão sólidas: a economista Maria da Conceição Tavares alerta que “as reservas brasileiras hoje são basicamente formadas pela conta de capitais, não tanto pelo superávit comercial. Significa que hoje são a contrapartida de algo fluido, capitais que não sabemos exatamente se representam investimento produtivo, de mais longo curso, ou especulação capaz de escapar abruptamente. Uma parte considerável desse ingresso pode ser de dívida privada. Com a anomalia dos juros, os maiores do mundo – a nossa herança maldita – e a oferta barata e abundante de dinheiro lá fora, nossas empresas se endividaram a rodo. Se houver uma reversão do ciclo, se o dólar se valorizar, o descasamento entre um passivo em dólar e receitas em reais, no caso de quem não exporta, ou exporta pouco, será traumático”.

7 – Endividamento crescente: O Governo Federal compromete metade de seu orçamento com pagamento da dívida, até hoje não auditada. A prevalência dos interesses do capital financeiro no Governo faz com que a taxa média de rentabilidade dos 50 maiores bancos seja sempre superior à das 500 maiores empresas. De 2003 a 2010, a taxa média de rentabilidade das maiores empresas foi de 11,5% e a taxa dos bancos, de 17,5%.

Na tentativa de combater a crise na indústria, o governo editou na semana passada algumas medidas. Mas elas não atacam a causa do problema: as altíssimas taxas de juros, estabelecidas pelo Banco Central (BC), que estimula rentistas de todo o mundo a tomarem empréstimos no exterior (a juros baixos) e trazerem estes dólares ao Brasil, para aplicar na “dívida interna” brasileira. Esta forte entrada de dólares causa a sobre-valorização do Real, que prejudica fortemente a indústria nacional.

Porém, o governo preferiu conceder diversos benefícios tributários a indústrias exportadoras, incluindo a substituição da contribuição previdenciária sobre a folha por uma contribuição sobre o faturamento, para alguns setores. Ao invés de reduzir as altíssimas taxas de juros, o governo prefere promover mais benefícios tributários que prejudicam o INSS, a Seguridade Social e os estados e municípios. Outra medida é o financiamento a empresas exportadoras por meio do “Fundo de Financiamento à Exportação” (FFEX), que poderá ser abastecido por títulos da dívida pública. Ou seja: mais uma vez, o governo poderá tomar empréstimos junto ao setor financeiro privado – pagando as maiores taxas de juros do mundo – para financiar, a juros baixos, o setor exportador.

Em suma: o governo recusa-se a combater as causas da crise: ou seja, não quer enfrentar o poderio do mercado financeiro, que exige altas taxas de juros.

Esse quadro demonstra que o Brasil se encontra numa situação de vulnerabilidade frente ao alastramento da crise. Na última 2ª feira, quando as bolsas do mundo inteiro despencaram, a Bovespa, com desvalorização de 8,08 %, teve queda muito superior à das principais economias, só perdendo para a bolsa de Buenos Aires (queda de 10,73%). Enquanto a presidente afirma que repudia “soluções recessivas”, o Ministro da Fazenda avisa que “não aceitará aumento de gastos e que não é hora de trabalhadores pedirem reajustes salariais”. Enquanto isso, os gastos estratosféricos, e cada vez mais suspeitos, das obras para a Copa e as Olimpíadas seguem crescentes e inquestionáveis.

Estamos diante da possibilidade de um ataque contra as condições de vida da população, buscando fazer com que o povo pague os custos da crise. Aos movimentos sociais, aos partidos com compromisso popular, à intelectualidade crítica e à juventude insurgente cabe ampliar a resistência social a estes ataques, visando construir um projeto alternativo de sociabilidade – pautada na solidariedade, na democracia participativa, na emancipação humana, na diversidade cultural e na defesa do meio ambiente.